sábado, 26 de setembro de 2009

Para nós, entrar no metrô já é se aventurar

A sensação é de não estar sozinho no mundo. Milhares de pessoas estão ao meu lado, um exército pronto para batalha, todos unidos a um mesmo ideal. De repente, ouço a linda voz da razão: “A faixa amarela é a sua segurança, não a ultrapasse”.

As portas do metrô se abrem e a multidão entra atropelando até o ar. A moça de vermelho quase cai, a cabeça de um engravatado passa a milímetros de um poste de ferro, um casal só se desgruda porque eu, sem querer, me ajeito entre eles. Uma senhora grita, ofendida: “cadê o respeito, meu filho!”. Todos olham para trás, fingindo não ouvir.

Meus braços estão lá em cima, imóveis. Já sinto um gel de cabelo me sujando a camisa. A moça de vermelho coloca uma música eletrônica no celular; ela dança a cabeça: é impossível mexer o corpo. A senhora ofendida levanta a sobrancelha, continua procurando o respeito.

Ainda divido o casal. Através de mim, eles enviam sorrisos e paixões reprimidas. Meus pés doem. Na primeira parada, entra um menino de quatro anos, que vai parar lá perto do meu joelho. O senso comum diz que não cabe mais ninguém ali. As pessoas do lado de fora discordam: entram mais dois infelizes.

O engravatado tenta pegar uma Veja, mas não consegue. O menino começa a chutar minha perna, talvez eu seja uma bola. A garota de vermelho desiste da música eletrônica, coloca Roberto Carlos, O divã. A senhora ofendida abre um sorriso. Ouvindo o tema romântico, o casal ameaça uma briga.

Na segunda parada, desce o engravatado. Pelo vidro, eu o vejo pegar a Veja e sorrir. Feliz, o garoto decide pisar no meu pé. A moça de vermelho e a senhora ofendida agora conversam sobre os anos 60. Formigam os meus braços lá em cima. Quero descer e mudar para o Acre. Lá, o metrô é vazio.

Discutindo o passado, o casal vai embora. Entra vendedor de amendoim: "é um real, senhora, e da melhor qualidade". O menino se interessa e para de me atormentar. A moça de vermelho e a senhora ofendida conversam sobre a Zibia Gasparetto. Eu penso nessas trilhas de aventura: em São Paulo, passamos por elas diariamente e ninguém percebe.

Um segurança se aproxima e toma o amendoim do cara. O menino chora, com a raiva e o desejo escorrendo pelo rosto. A senhora ofendida grita, relembrando o respeito devido ao vendedor, aos trabalhadores, aos aposentados, aos estudantes, aos cronistas e às crianças que gostam de amendoim. O segurança ignora.

Em seguida, a voz da razão diz: “Estação Sé, desembarque pelo lado esquerdo do trem”. Eu, o menino, a senhora ofendida, a moça de vermelho e o cara do amendoim, descemos, satisfeitos. Agora, só me resta sair e encarar outra aventura: o ônibus.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Três luzes de minha estrada

Pessoas aparecem em nossas vidas todos os dias. A maioria de forma leviana, quase insignificantemente: o balconista que te atende na loja, a mulher que senta ao seu lado no ônibus ou a adolescente distraída ouvindo música no fone de ouvido que tromba com você no meio da rua. Há também os colegas do trabalho, da escola, da faculdade, da rua. Ninguém se lembra dessas pessoas minutos após encontrá-las. Mais uma vez nos perdemos em nosso mundo.

Todos esses indivíduos apresentam potencial para protagonizar um acontecimento marcante em alguma vida, o clímax de um filme, um romance em uma relação. E alguns conseguem. Esses marcam sua vida, seu dia e, muitas vezes, são o motivo de você levantar às cinco da manhã e enfrentar o trânsito, a superlotação do trem e a caminhada debaixo da chuva.

Algumas vezes não aparece apenas uma, mas três pessoas. E, como em qualquer outro incidente, aparecem trivialmente em certo momento e pensamos que será só mais um desencontro. Lembro-me de três. Digo que lembro, pois não as vejo com a frequência que mereciam. São garotas, empolgadas com a vida, realmente vivas, bonitas, ousadas, engraçadas e completamente apaixonadas pelo que fazem. Aliás, as conheci antes de começarem a fazer. Seus olhos brilham ainda hoje quando se fala em jornalismo. Nesse momento é possível sentir o prazer que sentem nas palavras, na informação, na comunicação, na pirâmide invertida e na vontade de conhecer mais. É possível ver a aura de um amor incondicional – e é melhor que seja incondicional mesmo, é bom que se diga.

Elas me dão vontade de querer melhorar. Raquel está sempre de cabeça erguida, mesmo quando toda a vida não está. Encara tudo de um ângulo diferente: um melhor. Ana costuma me dar cutucões quando estou deprimido e ela até inventou o Projeto Sato Feliz, sempre acompanhado de uma dancinha realmente ridícula. O engraçado é que funciona: dou muita risada. Tamires é um mistério para mim. Provavelmente por isso é tão gostoso conversar com ela. Aliás, às vezes, quando a escuto filosofar sobre as coisas, acho que ela é um mistério para si mesma também.

É uma pena que meu contato com elas seja tão limitado, pois vê-las vivendo suas vidas e amando o que fazem me lembro de que pessoas incríveis estão por aí, o tempo todo e em qualquer lugar. Preste mais atenção a quem está ao seu redor. Cumprimente-as, sorria para elas, seja gentil. Você pode encontrar algumas das luzes de sua estrada: justamente as que faltavam para que perceba aonde deve ir.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Raimundo, o pombo sem dedos

Raimundo olhou para o céu cinza. Como não havia mais nada a fazer, pensou: “hoje não é um bom dia para voar”. O vento leste ia devagar, quase parando; as andorinhas, as únicas no ar, chamavam a chuva temida, tão temida chuva. Os aviões, seres mecânicos, deslizavam inalcançáveis lá em cima, mas a uma turbulência do chão. Definitivamente, o céu não estava para os seres alados, constatou Raimundo.

Raimundo é um pombo. Voa pelo mundo, mas não é rima nem solução. Não é um pombo qualquer, desses imundos, é apenas Raimundo, o pombo, branco como a paz. Senhor de todos os sete céus, telhados e barraquinhas de hot dog.

Raimundo é nordestino, mas veio para São Paulo na boleia de um caminhão. Hoje mora na Praça Silvio Romero, no Tatuapé. Raimundo é recordista em bater recordes: é o primeiro pombo a atingir a marca de 200 grãos de milhos comidos em um único minuto; é o pombo com o melhor arranque quando chutado por ser humano; é líder mundial em lançamento de coco.

Acontece que Raimundo está doente. Não que ele vá morrer tão logo, longe disso, mas é grave, sim, o enfermo do pombo. Raimundo contraiu o mais temido vírus da comunidade pombiana: o VCD (Vírus Cai o Dedo). Sim, após contrai-lo, o animal perde todos os seus dedos do pé. Sem dó nem piedade. “Essa doença é muito comum hoje em dia”, disse Raimundo em entrevista por e-mail. Depois, pergunta: “você nunca reparou na quantidade de pombos sem dedos?”

Segundo a Organização Mundial da Saúde, o VCD já atinge cerca de um terço de todo os pombos e pombas do planeta. Foram perdidos aproximadamente três milhões e meio de dedos. Um verdadeiro desperdício, se pensarmos nos direitos humanos.

“Para onde vão esses dedos todos? Para o lixo, é claro. Não há nenhum sistema de reciclagem e reaproveitamento para esse material”, diz Analisa Rosa, coordenadora da Organização Não-Governamental Dedo Vivo.

A depressão pós-dedo caído é outro problema levantado pelos defensores da comunidade pombiana. Afinal, dizem os especialistas, perder um dedo não é fácil, perder todos, pior. “Como andar? Como levantar vôo? E para comer os milhos do chão?”, questiona Raimundo, infeliz.

“Sabe, nós sofremos preconceito por parte dos outros pombos, os saudáveis”, diz Angelina, pomba há cinco anos, sem dedo há seis meses.

Com os machos, o preconceito é ainda maior. Dificilmente alguma fêmea se interessa por um pombo sem dedo. Não é metonímia, mas o dedo representa o todo. “Sem um dedo, pombos perdem a virilidade”, argumenta B.C., pomba menor de idade.

Raimundo não acredita nisso. “Sou tão bom de cama quanto antes”, confirma. No caso dessa doença, a confiança é muito importante. Por isso, Raimundo voa sem os dedos, mas com o orgulho pendurado nas asas. “Eu sou bom, cara...se alguém quiser, viro até Presidente da República”.